Dogville: a maldade das pessoas boas

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Um ensaio sobre a condição humana

Grace entra na cidade de Dogville como uma estrangeira, diz fugir de gângsteres.

Vulnerável a uma comunidade formada de pessoas boas. Pessoas boas, “com pequenos defeitos facilmente perdoáveis”. Juntas, porém, elas se tornam um leviatã capaz de devorar o mundo. Cada uma delas contribui com a sua parcela de maldade, maldade que todos trazemos dentro de nós e que muitas vezes passa despercebida até para nós mesmos.

Algo que desperta nossa maldade é a vulnerabilidade do outro, a certeza de que ninguém sairá em sua defesa, de que ninguém lutará por sua memória. É esse outro que, ao escolher confiar em nós, solicita nosso desejo de puni-lo por ousar ser doce em um mundo de bárbaros. É esse outro que, ao escolher nos amar por pura bondade, solicita nosso desejo de aniquilá-lo para, com isso, aniquilar também aquilo que ele nos mostra: que não somos tão bons quanto imaginávamos. É esse outro que, ao pedir nossa ajuda com humildade, solicita nosso desejo de vingança contra todas as pessoas que, um dia, diante do nosso pedido de socorro, viraram as costas.

É como se a humanidade estivesse viciada em repetir a extirpação de qualquer doçura que ameace a certeza de que o embrutecimento é caminho inevitável.

Grace resiste. Inventa motivos para perdoar, já que as próprias pessoas que a aviltaram sequer são capazes de reconhecer os próprios erros. Ela quer acreditar que é possível outra via para si mesma.

Ela está sempre ocupada de pequenos favores para essa comunidade que a acolheu. Mas as pessoas percebem isso de forma distinta: eles é que estão fazendo o grande favor ao aceitarem sua ajuda e um favor ainda maior ao aceitarem sua permanência.

Quando descobrem que ela é procurada pela polícia, a dívida se torna insolúvel. Grace se torna um objeto nas mãos de todos, para os favores de sempre e outros, exigidos com mais violência pelos homens. Ao conseguir dizer não a um deles, Tom, o homem bom por excelência, a resposta que ele dá é entregá-la àqueles de quem ela fugia. Tom não imaginava que, ao convencer a comunidade a deixá-la permanecer por duas semanas nas quais deveria provar seu valor, acolhia, na verdade, a filha do líder dos gângsteres. Ela estava ali em uma fuga, sim, mas em uma fuga do próprio embrutecimento, ao qual sua linhagem a condenava.

Então, o pai dá a Grace uma lição: justificar o que os outros fazem também é uma forma de arrogância. É não aceitar que as pessoas são capazes de escolher suas ações. É acreditar que compreender as circunstâncias que as tornaram como são é o suficiente para redimi-las. É acreditar que elas dependem da nossa misericórdia para guiá-las pelo caminho do bem.

É fingir que se é uma pessoa melhor do que aquilo que se é, para não enfrentar o fato de que cada um tem em si uma parcela de algo terrível que só vem às claras quando aparece em um rosto que não o seu.

O perdão infinito de Grace para as pessoas que a violentam dia após dia não as tornou melhores. Ela esgarçou os limites do que era aceitável pouco a pouco e as pessoas deixaram à tona a crueldade que fica em segredo, por não haver consequências para seus atos.

Punir quem a feriu talvez seja uma forma de dar a outra face, uma face que ninguém ali, até então, havia visto. A punição definitiva é não aceitar mais que essa pessoa esteja por perto, que ela não seja mais capaz de nos alcançar com sua violência. A distância talvez seja a única misericórdia que mereçam. A punição definitiva é não aceitar mais que aquelas pessoas fossem capazes de alcançá-la com sua violência.

Tudo que é excesso faz mal em algum momento. Até o perdão.

Para minha amiga Dora Steimer.

Wigvan Pereira
Wigvan Pereira

Para citar este texto:
PEREIRA, Wigvan. Título do texto. LitteræVia, Goiânia, dia, mês e ano. Disponível em: [url]. Acesso em: dia, mês e ano.

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